16 de setembro de 2010

FRESTA DE VIDA


Por Cinthia Montagner (@cinthiamtg) e Mariel Moura (@marielmoura)

Hoje chamou-me a atenção um homem no ônibus. Franzino e idoso. Os lábios quase inexistentes comprimiam os poucos dentes que restavam. Usava um boné vermelho que me fez lembrar um guerrilheiro. A barba rala mal cobria os sulcos profundos do rosto. Pensei

mesmo que ele poderia ser o homem mais velho do planeta. Toda a gravidade do mundo se concentrava nele. O sacolejar do transporte não o abalava: dançava com o asfalto. Os olhos perenes e densos no horizonte, de quem já balançou demais na estrada da vida.

E a vida, como a de qualquer idoso ou daquele senhor caridoso que, sentado ali, inerte, via a vida, já nem tem mais tanta vida: só uma fresta de vida, uma visão da janela, uma flanela que limpa os vidros num dia de chuva até secar. Não há intensidade, não, sim, nada, sorte ou azar: agora é decidir menos e esperar o tempo passar.

Já não há fé no futuro, amor puro, e todas as estações já brotaram do escuro. Tudo é resguardo, medo de sofrer, medo de morrer. Ele tinha tanto poder e não sabia, tudo tinha saída. Ela era bonita e possível. Ainda tinha muitos amigos. Poucas vezes estava aflito.

Vivo de mim, do que amei, do como saber viver - se é que sei -, de onde cheguei, do que tenho aqui. Será que cheguei aonde quis? Será que sabia aonde queria chegar? Não importa. O mundo continua transbordando ignorância e gente com fome. E quem está em cima, no geral, continua mau.

Fico aqui, parado, dançando com o asfalto e olhando pela janela. Olha como ela se parece com ela. Sim, aquela moça que me olha. Tem dó ou quer me levar pra lá. Eu já perdoei, fui perdoado e cansei de misericórdia. Dá um sorriso, pelo menos, e vai embora. Não importa qual time ganha a Copa. Tudo já foi. Agora só quero ir pra casa e guardar seu olhar, me trancar até esquecer. Outro dia, saio, não me custa. Agora, sobra juízo: tenho tudo que quero, mas não tudo que preciso.

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