30 de outubro de 2011

TUDO QUE VOCÊ PODIA SER



Pirilimpirilimpirilim. O alarme dele toca: “Acorda, filha! Tá na hora!”. Ela levanta na maior má vontade, mas pega a toalha e entra no banho. Empilhadeiras, carreteiras, tratores, areia, poeira, nenhuma vaidade. É alvo de cantadas o dia inteiro, descaradas, nas costas do pai.

Nunca quis ser engenheira; hoje entende do assunto. Acostumou-se ao trabalho fora do ar condicionado. Já sabia fazer metragem, ajudava os operários e, mesmo sendo linda, se misturava a eles. Só não gostava dos assédios baixos; criou um instinto de autoproteção: ao passo que respirava a poeira quente dos canteiros, fechava a cara.

A delicadeza de sua pele desaparecia em botas de borracha, vestes folgadas e um capacete grande para o rosto fino. Comia da mesma comida. Descansava e, à noite, fazia engenharia na federal. O meio masculino lhe deu destemor do nojo que queria sentir, mas não podia. Era profissão.

O convívio com gente humilde lhe deu uma tremenda simplicidade, mesmo a contragosto. Casou-se com um rapaz de classe média baixa. Tinha barba e usava cabelo bagunçado. Começou como aprendiz do Senai e foi trabalhar em Abu Dhabi. Os calos nas mãos lhes deram uma alma pronta pra aguentar a saudade. O resto resolviam por webcam.

Tiveram filhos e foram morar no interior. Horta no quintal. Tomavam banho de mangueira e mal usavam a internet. Tinham uma biblioteca particular e conversavam na sala, com a TV desligada, no fim do dia. Os meninos ouviam sobre política e música. Crianças na cama, melhor sexo do mundo, banho morno e sono pesado.


O alarme dela toca. Mora sozinha. Tem um gato que, assim que levanta, ocupa seu espaço no edredom. Entra no carro, põe Tulipa Ruiz e paquera no sinal. Olha o celular a cada cinco minutos. “Ele respondeu!”. Estaciona, abstrai do mundo e tem uma ideia pra peça. Precisa fechar, “preciso fechar”.

Entra na sala e os caras olham, tiram o fone. Aquilo é verdade? É sexta-feira, dia casual, e ela está linda e gostosa. Colar, brinco, vestido hipster e um decote comportado. “Que tesão, hein?”. Tatoo à mostra. Se sente, por um instante, a última bolacha do pacote. As outras ficam sem jeito, ela percebe e se mistura. Não é piriguete, mas curte ser adulada.

Gostaram da idéia. Tapinha nas costas e café marcado com o cliente. “O cara é bonito e mora sozinho, de repente...”. Sai tarde, passa em casa, toma banho e pub com as amigas. O assunto é homem, dá tédio. Pega o celular. Chega, saca o Rivotril. Tuita, curte, chora e dorme. TPM.

Carência, essa puta. De dia, uma rocha, deusa corporativa, bem vestida. A inteligência encanta tanto quanto os peitos. Toma uma, duas, dá risada, todo mundo escuta. Nunca sai zerada. Beija. Meiga de sapato boneca, imponente de salto. Lê filosofia. Dorme pouco, pensa muito. Detesta Friends. Adora House.

No fim de semana, cursa espanhol, abre o Mac e paga as contas. Vive numa bagunça organizada, cozinha bem, mas tem preguiça. Descongela nuggets. Assa empadas. Faz miojo. Come pouco, é verdade, mas o estômago grita. Almoça com os pais e se sente acolhida. Por pouco tempo. Luz de vela, incenso, retrocesso. Vários talheres na mesa, de tamanhos diferentes. Uma lady.

18 de outubro de 2011

TOO MUCH OF NOT ENOUGH



Não, não é isto que resolve a vida de ninguém. Não é um sorriso, um convite agradável, uma grafia bem feita, um efeito três dê, não é essa a solução dos meus problemas.

ANSIEDADE critérios expectativas status

Não quero comprar o que não preciso, comer o que não consigo, beber tudo isso.

Tirei 176 fotos em 2011. Meus dedos se movem como quero, não sinto dor, corro, subo escadas, ando rápido, enxergo bem, tenho bom raciocínio, me dou bem com as invenções do meu tempo e sou resistente a doenças.

Melhoro meu senso de tudo a cada dia, meu comportamento é fiel ao que sinto.

De novo: não sinto dor.

Se bebo demais, me recupero. Se jogo bola, me fortaleço. Se penso muito, surto. Se fico sozinho, ligo. Meus amigos me atendem. Se marcam alguma coisa, apareço. Meu dinheiro é bem gasto. Trabalho em um lugar foda com pessoas fodas. Amo o que faço.

O que está tão errado?

12 de outubro de 2011

SEBASTIAN VETTEL


Você vê todos esses bicampeões do mundo, nomes que ouço falar há algum tempo, então é uma sensação estranha. É difícil de entender que, sim, você faz parte desta lista também. Às vezes, você precisa de um tempo para conseguir perceber o que está acontecendo.

Mesmo no ano passado, quando venci o campeonato, que era a meta principal da minha vida, eu me vi próximo de todos esses caras e foi incrível. Em Suzuka, eu realmente não pensei no campeonato. Estava ocupado com tantas outras coisas. A adrenalina é grande. Você fica focado totalmente na corrida e, só depois, vem um grande alívio, mas daí a entender tudo que aconteceu não é tão fácil. Por isso, acho que leva tempo.

O primeiro título será sempre especial, porque é muito parecido com a primeira vitória. Você não pode dizer que foi melhor do que isso, não é assim que a coisa funciona. Se você olhar para o ano passado e para esse, vai ver que tudo foi completamente diferente.

Nós melhorarmos muito e amadurecemos. E se houve algum segredo, eu acho que seria isso mesmo. Nós fizemos tudo do nosso jeito, no nosso estilo e chegamos ao topo. De muitas maneiras, a sensação é imbatível. Às vezes, você precisa se beliscar. Sou uma pessoa normal, amo o que faço e estou feliz por fazer algo que muitas pessoas ao redor do mundo acompanham. É difícil entender e por essa razão é preciso se divertir também.

Você acha que é a mesma pessoa e muda, você cresce, então a vida muda e aí não é tão fácil de lembrar quem você realmente é. Pode até existir a tentação, mas no fim de tudo não é muito sábio ficar voando demais. Ontem à noite, nós voamos um pouco, mas acho que agora estou bem.

Sebastian Vettel, 24, bi-campeão mundial de F1

7 de outubro de 2011

WORLD UPON YOUR SHOLDERS



As luzes passam pela janela em alta velocidade como estrelas. De um lado, crianças adolescentes gargalhando caindo de bêbadas. À minha frente, um senhor. Parecido comigo, até, quando velho.

Mochila no colo, compras nos entrebolsos, sapatos velhos e engraxados. Um olhar de lamento: "passei por coisas que me tornaram quem sou hoje na idade deles".

Era isso que dizia com os olhos, de social, camisa e calça, respeitosamente.

Tanto barulho dizendo nada. Tantas palavras despidas sem exatidão. Tantos risos convertidos em ressaca no dia seguinte. O mundo será só deles.

Abismos entre o que (não) será e o que foi. É tão fácil subestimar.

Pinheiros, Lapa, Brigadeiro, Barra Funda, a vida se divide em estações e a liberdade carrega consigo uma solidão quase insuportável, daquelas de andar com um espelho rente aos olhos. Tensão, equilíbrio, inércia dos movimentos, rodopios da mente frente ao cansaço.

A fidelidade ao coração sobreposta ao coma. Os sonhos confusos, intensos. Acorda! A proliferação dos conflitos internos que aglomera e consome.

Extrato de maracujá pra dormir.

5 de outubro de 2011

THE REVOLUTION IS HERE


Fui ao cinema em 1999 sozinho para ver "Piratas do Vale do Silício".

Tinha 13 anos. Desmontava e formatava meu computador, fazia sitezinhos em HTML + Javascript, fuçava no Office 97, brincava no VB 4 e outras quinquilharias. Passava horas no computador (mesmo sem internet). Estava acostumado a ir na Santa Ifigênia e ver aquelas CPUs brancas rodando Windows 95.

Um dia, vi um computador em neon com tudo embutido no monitor e me causou certo impacto, mas só entendi o real significado daquilo depois daquela sessão no cinema. Anos depois vi o filme de novo e não era memória afetiva: a história da Apple foi extraordinária desde o começo (e Steve Jobs um baita chato perfeccionista obstinado).

O cara morreu e a mídia vai dizer um monte de coisas que já sabemos, mas não tudo.

Tecnicamente, Steve nunca foi um gênio, mas teimava em compreender as reais necessidades das pessoas para adequá-las aos seus produtos. Os projetos mais complexos do mundo são na área de software, e é muito difícil encontrar profissionais que consigam se aprofundar em tudo que envolve essa engenharia: usabilidade, pessoas, custo, timing, design, divulgação, plataforma, hardware, etc.

Steve Jobs foi referência em tecnologia nos últimos 35 anos porque soube lidar com tudo isso de forma obstinada, e com extrema atenção aos detalhes. Existem histórias que provam isso: quem ligaria para alguém numa manhã de um domingo para dizer que a tonalidade de um ícone está incorreta? quem se preocupa tanto com as embalagens quanto com o produto em si?

Nós sabemos que no ambiente de negócios, onde envolve dinheiro e interesses de todos os lados, ninguém passa a mão na cabeça de ninguém. Você simplesmente precisa provar que é bom o tempo inteiro.

Steve Jobs não foi mimado nesse sentido: trabalhou duro com Steve Wozniak para tornar a Apple um sucesso, entrou numa egotrip e foi chutado deliberadamente pelo ex-presidente da Pepsi (sic), fundou a Next, constriu as bases do Mac OSX, voltou para a Apple, tirou a empresa da bancarrota, deu tiros certeiros com produtos diferenciados (iMac, iPod, MacBookAir, iPodTouch, iPhone, iPad), transformou mercados (smartphones, indústria fonográfica), criou mercados (tablets, PCs), transformou a cara de uma geração inteira e OCEANOAZULOU TUDO.

A grande inspiração pra mim foi a elevação da tecnologia ao estado de arte. Não basta ser útil ou necessário: as pessoas precisam querer usar algo com os olhos brilhando (a mesma sensação que temos quando ouvimos música, por exemplo).

Steve nos livrou de empresários coxinhas, telas monótonas, botões quadrados, blocos cinzas e tempo gasto com interfaces pouco intuitivas. Na parte de usabilidade, chutou traseiros de Google e Microsoft sem o menor pudor. Todas as aplicações móveis e sistema operacionais bonitinhos e legais de mexer que vemos hoje são tendências que a Apple criou através do Lion e do IOS. Steve protegeu a combinação hardware-software construíndo seu próprio sistema para sua própria máquina e hoje os computadores pessoais da Apple dão um banho na concorrência em quase todos os aspectos, deixando o Windows (e suas DLL's arcaicas) parecendo firmwares chineses.

(Nada contra a Microsoft. Meu computador é um PC e amo o Windows XP, mas...)

Como se não bastasse, Steve conseguiu com que seus produtos fosses idolatrados e desejados por todo mundo. Pessoas vendem um rim, literalmente, para comprar um iPad.

Steve, obrigado por me devolver a música e podê-la ouvir quando quiser, onde quiser, de um jeito tranquilo e, principalmente, por tornar minha profissão apaixonante. Sei que hoje posso encarar tecnologia como uma ciência criativa e ninguém vai achar ruim. Mudou minha vida. Hoje perdi uma referência, mas nunca a inspiração. Bom descanso.

Deixo aqui três pílulas históricas:

O comercial da Apple no Superball de 1984, com direção de Ridley Scott. Publicidade em tecnologia, capítulo 1.



A apresentação do Macintosh, 1984.



O discurso em Stanford, 2005.

2 de outubro de 2011

INFÂNCIA REPRIMIDA

Nesse dia dormi mal e chorei, mas tinha um pato de rodas.

Longe de ter tido uma infância reprimida. Brincava por horas com carrinhos. Minha mãe saía e, se me deixasse em casa com o fone no ouvido (fones enormes), ficava quietinho até ela chegar. Já amava música quando criança e até hoje fico decorando letras.

Andava de bicicleta no quintal, na rua... tentava fazer cavalo de pau, mas acho que nunca consegui. Andava de triciclo também. Sempre achei demais o vento na cara, dirigir, fazer coisas.. Um dia passei horas pegando plantas e espremendo num copo, a meleca verde era esquisita, mas estava descobrindo o mundo de forma simples.

De triciclo na garagem onde meu pai deixava seu Passat.

Via Chaves e outros desenhos. Adorava a presença da minha mãe, na sala, arrumando as coisas. Adorava a limpeza dela, os móveis cheirosos. Meu pai chegava às 18h. O cheiro de gasolina do Passat era gostoso, ficava vendo o carro entrar pela janela. Ele alugava os filmes do Charlie Brown pra mim. Uma vez alugou Akira, não gostei muito. (Até porque Akira é mais adulto). Jogávamos Space Invaders no Atari: "Vou acabar com a raça desses monstros!". Depois Super Mario World, depois Mortal Kombat. Ganhei meu Super Nintendo no dia 8/12/1993. Foi absurdo, fiquei contente pra caralho.

Adorava desenhar de tudo, principalmente carros. Era o melhor desenhista da sala, talvez virasse profissão. Um amigo vivia trocando os desenhos dele pelos meus. Eu trocava porque não estava nem aí, "eram só desenhos". As professoras pagavam pau como se aquilo fosse extraordinário para um menino da minha idade. Meu pai também curtia. Tenho os rabiscos até hoje numa pasta.

Sentava na escada e desenhava. Isso se repetia quase toda tarde.

Aos sete, participei de um concurso com mil crianças e ganhei. Primeiro lugar geral. O prêmio foi um Dynavision (com revólver e um jogo de matar patos). Subi no palco e agradeci. E fui aplaudido por todo mundo sem saber porquê. "Era só um desenho". Meus pais ficaram super entusiasmados. O ex chefe dele escreveu no verso: "Luiz, Parabéns! Invista nesse garoto!".

Depois me mudei e o resto já escrevi aqui. Lembro como me sentia, rolava uma ansiedade enorme de brincar, jogar, sair... na verdade, era uma ânsia de liberdade que hoje entendo melhor, sinto de outro jeito e faço questão de preservar.  

No quintal, andava horas e horas em círculos. Adorava essa bike!

Quando era criança, fiz coisas incríveis (modéstia parte), mas nunca precisei de aplausos (e não porque era uma criança prodígio, pelo contrário, era normal e não entendia o sentido de ser reconhecido). Crianças, em geral fazem coisas incríveis, e nós, como adultos, temos a responsabilidade de dosar esse brilho e ao mesmo tempo incentivá-lo, e não enquadrá-lo em padrões mesquinhos como costumamos fazer. Precisamos manter essa dedicação despretenciosa na fase adulta.

Olhar pra trás é legal, te dá uma visão do que realmente importa. Se tivesse de tirar uma lição do que ser criança significa, diria que é essa liberdade de fazer coisas sem o peso do sucesso, sem louros, sem essa meritocracia que gostamos de alimentar. E viva a vida!