22 de fevereiro de 2010

LOVE RIDDEN

O rádio relógio anuncia o início de um dia de reflexo do sol nas lâminas da linha do trem. O despertador soa desagradável como uma velha coruja de cordas roucas cantando ao pé do ouvido, anunciando mais um dia de morte.

O sapato sujo esfarela a lama seca do tapete. O mormaço invade a manhã e faz o dia amanhecer num laranja meio acinzentado. A fumaça negra do diesel invade o ar e faz arder os olhos e a pele. Tudo começa igual, idêntico, cego. Tudo começa sem ter terminado. O estômago revira de nojo, ódio, indisposição. “Mais um dia”. O ácido ascende pelo esôfago, queimando, desacelerando os passos: “Não interessa. Esteja lá. Esteja lá. No horário.”

O andar acelera, os poros respingam incerteza, obrigação, cansaço. Um refresco: um suco gelado, que de suco já não tem nada: foi misturado à pedras enormes de gelo e agora é só um líquido ralo, sem gosto (e quase sem cor), caro e não fiscalizado pela vigilância sanitária. E rende. O gelo transforma poucas frutas em muitos litros. E o vendedor transforma poucos litros em muitos centavos.

Aguardo o trem na estação, atrás da linha amarela, paralelo a outros trabalhadores e miseráveis que portam celulares e relógios com ponteiros que avançam em doses homeopáticas. O trem chega, as portas se abrem e começa o espetáculo de pequenos suicídios diários: forçam a porta, esbarram, seguram, se submetem a humilhações num dia que nem começou. Já travam luta para conseguir centímetros de chão para pisar, dentro de vagões fechados a vácuo sob o sol matinal.

Assim, caio dentro. Inevitavelmente embaixo de um ar condicionado que mistura frio congelante com um cheiro forte e desagradável vindo dos rios da cidade. Vou de estômago gelado, garganta fria, cabeça quente e espírito encharcado de uma força de vontade quase submissa e escrava: não envolve amor, paixão ou entrega. Muito menos lealdade.

Desembarco já olhando atento o ponto da segunda condução: “Será que o ônibus já passou?”. O trem vem lento, lotado, com escalas quase infinitas e desnecessárias para quem já está atrasado e cansado.

Chego entorpecido em melancolia. Amassado. Apertado.

Saio apressado e desembarco num centro sujo de outra cidade de arrecadação generosa e desvios de verba excessivos. Desço, não digo nada, nem uma palavra, nem lá, nem aqui, nem agora. Fiona fala por mim. No fone, nas caixas. “Love Ridden” no volume máximo.

Passo por túneis sujos, pixados, com esgoto fresco escorrendo pelos cantos, baforando ainda quente no meu rosto, ferindo o olfato como um tapa na cara moral, comprometendo qualquer higiene preventiva que tenha feito antes de sair de casa.

Nesses túneis dormem mendingos junto aos seus próprios excrementos, apoiando a cabeça em encanamentos precários, junto a pequenos córregos que correm a céu aberto. É preciso ter cuidado com a urina pingando do teto.

Subo as escadas, implorando por um metro cubico de ar fresco, por alguma árvore para encostar, talvez. Espero no ponto, sem linha amarela ou maiores restrições dessa vez.

Atrás, uma estação da guarda metropolitana estranha, quase abandonada. Ao lado, um afluente do rio Tietê onde outro dia jogaram na minha frente um filhote de cachorro numa sacola de supermercado com a maior naturalidade. Logo à frente, um viaduto. Em baixo, dormitórios para moradores de rua feitos de cimento, e ainda: sobre o mesmo afluente fétido e entre duas avenidas movimentadas.

Do outro lado, uma praça, de bancos quebrados e árvores quase imperceptíveis em meio ao concreto. Na pista, caminhões cargueiros que esfolam o asfalto já judiado, com pressa, portando motoristas movidos a rebite e barbitúricos rumo a Santos. Lá na frente, um posto onde fui comprar um pão outro dia e, na boca do caixa, ouvi: “Será que este pão não está estragado? É melhor nem vender!”. A moça que abriu a boca era novinha e falou na inocência, claro. Já o caixa não estava lá muito preocupado com o estômago dos clientes.

30, 60, 90, 120 dias. Idas e vindas. "E a qualidade de vida?". Agora tudo o que tenho dentro de mim é uma carga energética negativa, cansada, explosiva acima de tudo, cheia de ódio, repugnância, indignação. Andei ultimamente por lugares pouco cheirosos. A situação no geral, diga-se, é pouco cheirosa.

Não precisava ser assim. Meu único suspiro de nobreza, se é que existe, é honrar meus pais, meus amigos e as pessoas que amo. De resto, já não resta quase nada.

ANIMAIS

E então tentamos explicar o inexplicável: essa força quase selvagem que nos move por aí. E a gente nem sabe de onde vem. Tudo para, basicamente, demarcarmos o nosso território, construírmos nossas armas, saírmos por aí: hostis, egoístas, em busca de abrigo, subsistência, boa companhia, querendo partilhar idéias para conquistar aliados. E ainda: gritamos como aborígenes quando as coisas vão mal, e, às vezes, os gritos vem de dentro, se espalham em meio às músicas e se funde ao silêncio do quarto.

"There's someone in my head, but it's not me": Constantemente ouvimos vozes proclamando competição, o cada um por si, o agora, a posse, a negação do fim, um ponto de vista limitado sobre viver plenamente. Tudo isso nos invade como uma doença incurável: uma contrariedade constante que incomoda como uma abelha insistente que pousa em nossas consciências nativas e originais.

Sim, ainda há esperança: Já provamos que podemos conviver em sociedade, mesmo sendo animais com instintos primários exarcebados. Podemos construir coisas que beneficiem à todos, ainda que seja através de escambos e trocas desreguladas.

Você acha que ser comparado a um animal é um insulto? Então olhe para baixo: mãos de macaco, pêlos, crânio, ossos, tudo biologicamente evoluído e projetado para ser um animal que você acha que não é. Você não percebe, claro, porque tem escovas, barbeadores, roupas e artefatos que negam sua própria natureza.

Olhe em volta e veja: outros macacos, caminhando, se comunicando. Percebe como isso é deprimente e maravilhoso ao mesmo tempo? Não estranhe que ética, bem comum, meio-ambiente, futuro e amor sejam conceitos complexos demais hoje em dia, grandes demais para serem exercitados.

Nós, macacos, estamos só aprendendo a lidar com isso, ou dando alguns passos para trás como em um período de transição: descobrindo lentamente o nosso verdadeiro lugar no mundo, para quê viemos e para onde vamos!

Ainda é difícil pra muita gente aceitar que somos simples animais, sem 'uma missão' ou uma tarefa divina que nos foi delegada subitamente por um ser superior. Somos audaciosos e ambiciosos demais. Queremos sintonizar nossa pobre natureza espelhando uma superioridade humana que não existe! Ainda é mais fácil entender a existência se colocando como um animal teimoso, que tem muitas e muitas gerações pela frente para entender porque essas coisas nos faz entrar em colapso.

A inteligência ainda é uma ferramenta distorcida, imatura e mal utilizada. Os sentimentos, então, nem se fala. Provavelmente ainda se baseiam em puro instinto, apesar das derivações emotivas que ainda estamos desenvolvendo. 

Alguns macacos já nos levaram ao limite e outros continuam nos levando, mas a grande maioria desaprende fácil, se vende fácil, é manipulável e se acomoda. Não há nada de errado nisso. Os outros animais também são assim, nada complexos, totalmente previsíveis: se defendem ferozmente de ameaças, se protegem, atacam quando julgam necessário. Hoje descobrimos novas e complexas maneiras de fazer isso (dotadas de poder financeiro ou coletivo) para diminuir as chances de dar errado, mesmo sabendo que alguns venenos funcionam, outros não. E ainda, na maioria das vezes, respondemos aos avisos do próprio corpo: fome, sede, calor, frio. A capacidade de prever problemas além dos nossos sentidos ainda é pouco desenvolvida.

De qualquer forma, estamos indo até longe demais para um bando de macacos que tem só alguns milhares de anos de evolução.  Percebi que, para entender algumas coisas, não vale a pena se munir de inteligência. Uma dose de 'Animal Planet' pode ser uma saída para muitas questões que nos afogam atualmente.

E assim caminha este animalzinho que vos escreve, tentando projetos que não vão muito além do que escrevi. Alguns, inclusive, não fazem o menor sentido. Mas precisam ser feitos por um só motivo: tornar minha sobrevivência mais fácil para lidar com o tédio de uma maneira mais conveniente.

18 de fevereiro de 2010

ZERO DAYS OF PEACE

Os dias vão passando, e fragmentos de experiências passadas a cada ano vão se acumulado na memória como um computador inconveniente que decifra bobagens, recupera traumas e nos devolve um dicionário de lições aprendidas por caminhos tortuosos.

Agora, dentro desse labirinto de sensações visuais, auditivas e sensitivas que une passado e o futuro, tento unir as coisas que aprendi com aquilo que quero: aceitar a existência como algo positivo, partilhar paz, cultivar saúde espiritual, física e mental e encarar os problemas mundanos com toda a dignidade.

Sinceramente, não sei de onde tiro forças. Não sei até onde isso vai. A única coisa que parece cristalina e clara é onde quero chegar. E o depois do depois, só o tempo. Depois ainda, só meus cabelos brancos, chaqualhando na atmosfera numa 'carrera' atrás de um volante, correndo com meus próprios pés ou com as mãos gerando sons de diferentes tons.

A fase não é fácil. Repito: A fase não é fácil. A consciência grita e esgoela como uma sirene tardia, que avisa e remedia sem prevenir. Tempo, alta-fidelidade, disciplina, foco, atenção: todas essas coisas que me faltam devem virar pontos fortes que não sei se um dia terei, e que um dia fizeram parte de alguém empenhado e motivado naquilo que fazia.

Meus pontos fortes e fracos não significam nada perto da quantidade de pessoas que sofrem de necessidades fisiológicas. Todos precisam comer, viver, cagar e até morrer em paz.

Ah, a paz. Um dia eu chego lá.
Um dia eu consigo, nem que seja incompleta.
Mesmo que seja uma experiência oscilante.
Que a paz, ao menos, seja um objeto cortante, que divida o sucesso do fracasso.
Que devolva alguma alegria e alivie meu cansaço.

11 de fevereiro de 2010

INTERLÚDIO

E encaro novamente o vazio de não saber o que escrever, apesar do inchaço, da ressaca e do turbilhão de inconformidades, rumo a implosão.

Encaro novamente esta límpida tela, astigmatizada por meus olhos que insistem em lagrimejar, com alguns graus pra cima, pra baixo, pro cérebro, corpo, alma, todos desregulados, batendo por todos os lados das paredes irracionais que tenho quando estou fraco e cansado de lutar.

Ouço Air Supply porque o som é triste, porque as letras são idiotas e refletem exatamente meu estado de espírito. Perdido.

Não sei o que fazer da vida, não sei onde estou, e as coisas que faço são distração para a encarar uma realidade que é cada vez mais fria, áspera, material.

Estamos mudando as coisas e esquecendo das pessoas. Justiça, igualdade e vida são conceitos sem plenitude, não acessíveis, nem democráticos.

Não fazem parte de mim. Não sou eu. Não me sinto parte de nada.

Não encaro consumismo como instrumento de prazer, não encaro a felicidade como uma realidade concreta, não tenho paz.

Para prosperar, terei que me adaptar a um monte de grupos sociais interessados, egoístas, maniqueístas que querem consumir e não enxergam absolutamente nada.

Este texto é irracional. Toda luta é em vão. Sigo buscando paz. E um lugar, um canto de uma mesa, discreto, escuro, onde possa sentar e me sentir lá, agindo, pensando, tornando qualquer coisa braços e braços de bem estar comum.

[ Lágrimas ]

10 de fevereiro de 2010

ELA


Aqui e agora escuto as mesmas músicas que tenho ouvido há algum tempo, mas, curiosamente, parecem desconhecidas, como um amontoado de sons cantados e tocados. Não ecoam em lugar nenhum da alma, onde costumam repousar e encontrar abrigo em meus ouvidos. Fecho o player, ouço o vento e vejo as letras que digito na tela. A vida parece tão vazia quanto o fundo branco do bloco de notas, ou tão negra quanto a cor das palavras que o preenche.

Um ano e alguns meses se passaram. Muitas contrariedades foram superadas, muitos sorrisos e muitas palavras proferidas, claro. Houve espaço para pequenos gestos de intimidade, ajuda mútua e descontentamento também. O que quero dizer é que, durante todo o tempo que esteve comigo, ela me conquistou em pequenas frações que se tornaram imensas. Me conquistou na sinceridade do olhar, na simplicidade de seu ponto de vista sobre situações complexas ( o que é necessário ), me conquistou com sua pureza e com seus bonequinhos de olho e boca que desenhava ou encontrava por aí e achava legal, tornando-se uma de suas marcas dentro de mim que provavelmente não vou esquecer.

[Lágrimas] 

Ela me suportava nos dias de bom e mau humor, e me acompanhava onde quer que fosse, com chuva ou sol, em lugares que desconhecia, com gente que nunca tinha visto na vida, numa rotina que não imaginava parecida: assim começamos todo o nosso trajeto. Mais tarde, tudo se tornou comum também pra ela, e eu a aceitei como um pedaço de mim mesmo: sem rejeições, e com toda a importância que deve ser dada a alguém que se ama.

[Lágrimas]

Ela me ensinou o valor das coisas pequenas, de um olhar, de um objeto singelo, de simples gestos que hoje sei que fazem diferença no dia-a-dia. Talvez nem ela saiba o tamanho e a preciosidade que tem. Provavelmente o mundo ainda não se deu conta da diferença que pode fazer na vida das pessoas. Ela é inteligente, extremamente meiga e tem gestos faciais difíceis de decifrar, mas que já sei de cor e salteado.

[Lágrimas] 

E pensar que eu fui, e provavelmente ainda sou quase tudo que ela tem. É muito. Não mereço tal honraria. O mundo é assim: deixa tesouros na mão de pessoas normais, egocêntricas, egoístas, que não sabem direito o que fazer com tal preciosidade em mãos. E eu não soube. Não soube impor os caminhos adequados, não soube valorizá-la como merece, não soube dizer as coisas que ela precisava ouvir em época tão turbulenta de sua vida, de poucas respostas, muitas decisões e sobra de dúvidas. Por esse desequílibrio entre insatisfações e incertezas, decidi por mim, por ela e por nós. O futuro me dirá se minha decisão, que assumo, foi injusta, já que é tão difícil nesses casos saber o que é certo ou errado. Tudo o que sei é que nunca haverá um casal no mundo como eu e ela. Éramos uma peça única, que desfilava cumplicidade por aí, e muito amor. Éramos um. E é por isso que agora, com lágrimas correndo e caindo, me sinto multilado, sangrando e hemorrágico aqui dentro, como se tudo perdesse o sabor e a cor. Se alguma coisa ainda tem sentido, se baseia nos princípios que ela me ensinou, de paz e felicidade nas coisas pequenas.

Espero que o nosso namoro tenha sido, assim, pequeno perto de nós: um teste, uma coisa que tentamos juntos e não deu certo. Já fomos amigos, amantes e namorados na sequencia, e, recentemente, tudo isso ao mesmo tempo. Espero de verdade que isso continue, já que aqui não tem espaço para ódio, ressentimento, rancor ou nada parecido. Se o projeto que tínhamos não deu certo, podemos tentar um outro, maior ainda, vivendo uma relação honesta e sincera, de lealdade total e irrestrita, mesmo com outros caminhos que virão. Quero que isso seja maior que este universo, que todas as coisas materiais, que toda complexidade que nos torna doentes. Concordo com ela: as coisas simples e que nos deixam verdadeiramente em paz estão no coração.

[Lágrimas]

Só posso agradecê-la. Voa, menina, voa. Desculpe-me pelas feridas. Perdoa-me pela minha insensatez prática. Os erros que cometeu já estão perdoados e deles não quero mais saber. Somos maiores do que um rótulo e que toda a complexidade que as relações humanas envolvem. Mariana, eu te amo. Minha amiga, irmã, confidente, namorada e tudo o que é agora que de tão bonito ainda não criaram nome. Espero que não haja espaço para sentimentos ruins em seu coração direcionados a este cara normal que conviveu com você durante todo esse tempo. Ele é normal, que não soube lhe dar o que merece, mas vai continuar pegando no seu pé para tomar as decisões certas na vida, como obrigação mínima que tem por tudo o que lhe ensinou.

E aqui estou, sem dimensionar tempo, espaço, período ou sentimento. Estou aqui, para o que precisar, sempre.

Mariel F. Moura